sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O REUNI, o Conselho Universitário da UFF e a razão cínica

Marcelo Badaró Mattos*

"(...) Uma sombra densa e pesada eclipsando o que há de melhor na sua alma
O verdadeiro terror, mais sufocante que o calor
Essa é a sua jaula
Os desertos se encontram de várias formas
Seja no espírito no solo ou na mente através de idéias tortas
Que produzem gente morta em escala industrial
Guerra pela terra
A pedra contra o tanque
Guerra altera a terra nada será como antes
Na inversão dos papéis do pequeno Davi contra Golias o gigante
Como os barões das mega-corporações
Gigante como o coronelado dos grandes e pequenos sertões
Como vários e vários Ubiratans
Com seus sanguinários batalhões
Que na sua prepotência e ignorância bélica
Não conseguirão perceber a força e a chegada certeira daquela pedra
Juntem as forças pra seguir nessa jornada
Busquem as forças pra lutar na sua própria batalha(...)"
Lirinha e Bnegão

Hoje (14/12/2007), pela manhã, vi muitos estudantes da Universidade FederalFluminense (UFF) com os olhos vermelhos e em lágrimas. Era o efeito do sprayde pimenta lançado por policiais militares que, aos empurrões e com ameaçasde prisão, impediram seu acesso ao prédio do Tribunal de Justiça de Niterói,aonde se realizaria uma reunião relâmpago do Conselho Universitário da UFF,que aprovou por unanimidade dos presentes o envio ao MEC de um projeto para"a adesão da UFF ao REUNI", conforme logo noticiaram os sítios da imprensadiária.

O REUNI, para quem não acompanhou toda a história, é um programa de expansão, instituído por decreto pelo governo Lula da Silva, que prevê (mas não garante) um pequeno aporte de novos recursos para as Universidades Federais, em troca da expansão de vagas para estudantes para até o dobro dasatuais e a conversão dos cursos superiores a um modelo de formação mais rápida, em dois ou três anos e sem habilitação profissional precisa. Ou seja, trata-se de uma proposta de trocar promessas de novos recursos por uma completa mutação dessas instituições em fábricas de diplomas.

A UFF foi uma das últimas Universidades Federais a aprovar o envio de projeto. Por um só motivo: a comunidade universitária discutiu a proposta e, a partir das decisões de seus fóruns internos, posicionou-se, por ampla maioria, contrariamente ao REUNI. Mas, o reitor Roberto Salles e seus apoiadores não poderiam se contentar em reconhecer a vontade da Universidade. Para imporem a sua vontade (e os seus interesses), recorreram a uma série de manobras, ao uso aberto da repressão e a um cinismo sem precedentes na instituição. Primeiro, suspendendo a sessão do conselho universitário em que a primeira versão da proposta seria votada e certamente rejeitada. Seguiu-se uma breve ocupação dos estudantes na reitoria da Universidade, exigindo a realizaçãodo conselho para que o projeto fosse rejeitado. Mandatos judiciais, emprego da polícia federal e ameaças de toda ordem já foram ali mobilizadas pelos que hoje administram a UFF.

Dias depois, uma nova reunião do conselho votou que a UFF não aderiria ao REUNI e elaboraria um projeto próprio de expansão, autônomo, a partir do trabalho de uma comissão de representantes do conselho universitário. Desrespeitando o Regimento do conselho, o reitor não aceitou as indicações do DCE (a entidade representativa dos estudantes) para a comissão, o que já deixava claro o conteúdo de sua manobra. Não foi preciso esperar muito, pois logo o tal "projeto autônomo" foi divulgado e, surpresa!, era o mesmo projeto anterior, mal travestido pela ausência da palavra REUNI (só da palavra, não da coisa, toda ela lá). Num novo movimento, o reitor tentou aprová-lo em uma reunião ordinária do conselho em que a proposta não estava em pauta e, portanto, ninguém a havia lido. Depois de muita confusão, recuou e convocou nova reunião do conselho, dessa feita extraordinária, com apenas o projeto, até ali dito "autônomo", para aprovar.

No dia 12, a reunião extraordinária foi aberta com falas das entidades representativas dos professores e servidores técnico-administrativos, contrárias ao projeto e com uma apresentação do mesmo feita por um membro da comissão, em cinco minutos, que não tocou em uma linha do conteúdo da proposta. Em seguida, desrespeitando os procedimentos estabelecidos no regimento do conselho, o reitor tentou colocar a proposta em votação de imediato, sem qualquer debate. O resultado foi uma confusão, armada a partir do momento em que os estudantes presentes à sessão começaram a protestar com palavras de ordem e músicas. Trocas de empurrões e cenas lamentáveis, como a do próprio reitor empurrando estudantes. Enquanto saía da sala de reuniões, revelando o grau de cinismo de sua performance e desvelando, ao mesmo tempo, que o projeto que não ousava dizer seu nome nada tinha de "autônomo", o reitor Roberto Salles protagonizou uma cena realmente bizarra. Primeiro pronunciou, em meio à gritaria, a frase: "os conselheiros que concordamlevantem as mãos" e, em seguida, braços para o alto, na porta da sala, de onde correria em seguida para se trancar no seu gabinete, com a Polícia Federal lhe servindo de escolta pessoal, gritou: "Está aprovado o REUNI naUFF". O rei(tor) estava mesmo nu. À tarde do mesmo dia declararia que considerava o projeto aprovado e que abriria inquéritos para punir os estudantes que se manifestaram no Conselho.

As mesmas vozes de cima (do MEC), dos que manipulam os cordões desse patético reitor marionete devem ter lhe soprado ao ouvido que desta forma corria-se riscos. Afinal, o REUNI não é um projeto local e a UFF não é uma exceção. No Brasil todo, o projeto tem sido aprovado com manobras como esta em cada Universidade. Discussões com a comunidade e a sociedade, não as há,e quando excepcionalmente acontecem, por pressão dos movimentos organizados, a comunidade universitária se posiciona contra. Mas, seguem-se encenações como a que Roberto Salles tentou fazer na UFF e os projetos são enviados a Brasília. Por isso, no Pará e no Maranhão, por exemplo, decisões de primeira instância da justiça federal suspenderam a adesão dessas Universidades ao REUNI.

Seguindo os movimentos indicados por seus operadores, o reitor títere da UFF partiu para o inusitado, convocando o conselho universitário para uma nova reunião, desta feita no Palácio da Justiça de Niterói. Lá, foram barrados com violência policial na porta, não apenas manifestantes, mas também alguns conselheiros. Com uma sessão secreta, o tal reitor, que tem dificuldades até para encenar o script que lhe escrevem, deve ter tido um pouco mais de facilidade para, tão logo chegaram os conselheiros (os que o apoiaram) que garantiram o quorum da sessão, colocar o projeto em votação (terá ele desta vez se lembrado de dizer que era um projeto "autônomo"?) e, em menos de cinco minutos, considerá-lo aprovado, para em seguida se esgueirar por uma portinha lateral do prédio e fugir (deve ser a sua décima fuga), dos estudantes, professores e técnicos que deveria representar.

Impressiona a lógica da razão cínica que foi esgrimida na UFF. Apresenta-se como benefício o que a maioria já avaliara como regresso; apresenta-se como"novo" e "autônomo", o que a comunidade universitária, que sabe ler, enxerga ser o mesmo; votos mudam ao sabor do vento, de tal forma que o que era ilegal numa tarde vira legal na manhã seguinte, no voto de um mesmo conselheiro; contrariam sem dissimulações os procedimentos institucionais para "aprovar" a proposta e solenemente proclamar a "vitória". E, cinicamente, comemoram, como tristemente demonstrou um estudante na porta do prédio que, por compromisso partidário com o governo, defendeu a proposta e pôs-se a provocar os manifestantes com argumentos sobre a "conquista" de novas verbas para a UFF. Roberto Salles, rei(tor), já havia encenado a apoteose, no episódio já narrado em que ergueu os braços e proclamou, não sem antes ter dado uns safanões em estudantes, com o mesmo sorriso cínico na boca: "Está aprovado o REUNI na UFF".

Não devemos nos contentar em constatar essa razão cínica - este gozo perverso, esta legitimação do vale-tudo - apenas observando os seus sintomasno interior de uma Universidade que se quer modelo, mas se faz espelho da deformada sociedade em que vivemos. É preciso encontrar as causas deste cinismo patológico deformado e deformador. E essas causas estão no interior da própria universidade pública (vinculadas ao projeto que sucessivos governos lhes impõe de subordinação ao mercado), corroendo-lhe o caráter público há muitos anos. Não a toa, o mesmo reitor da Universidade Federal do Paraná, que aprovou o REUNI a portas lacradas, foi agora multado pela justiça por descumprir deliberações do Tribunal de Contas da União, que constatou a transferência indevida de recursos públicos a uma fundação privada, dita de "apoio" (pode haver mais cinismo do que nessa expressão?) à Universidade. Ou mais patético, a mesma procuradora da Universidade Federalda Bahia, que comandou a mobilização da Polícia Federal para a desocupaçãoda reitoria da universidade - ocupação feita, como em tantas outras universidades pelo país contra a aprovação do REUNI em reunião a portas fechadas do conselho de lá - dias depois entrou algemada numa viatura da mesma Polícia Federal, acusada de formação de quadrilha e desvio de dinheiro público. No segundo episódio o sorriso não lhe escapava como, cinicamente,ocorrera no primeiro.

Os olhos dos estudantes da UFF lacrimejavam hoje por causa do spray de pimenta, mas eles não se sentiram vítimas. Eles tinham consciência de que enfrentariam mais violência e sabem também que dado o atual estrangulamento da Universidade Pública, os que nelas estudam são tão poucos que os PMstemem agredi-los com maior vigor, com um medo de esbarrar em algum filho de"gente importante" que não manifestam quando dispersam a bala uma manifestação de moradores de favelas, por exemplo. E tendo consciência disso, aqueles estudantes lutam pela ampliação do acesso à UniversidadePública, para garantir o direito à educação de todos(as). Mas a uma educação superior de qualidade e não a uma certificação vazia de conteúdo em cursos por internet ou televisão, vídeo-games de formação, que produzirão canudos para quem não terá parede em que possa pendurá-los. Um dos estudantes que estava hoje lá na porta do tribunal perdeu recentemente a visão e participou de todo o ato, sendo também agredido pelos policiais, porque enxerga claramente no que os cínicos estão transformandoas Universidades Públicas. Quantos de nós continuaremos nos fingindo, cinicamente, de cegos, enquanto o sentido público da Universidade sedesmancha por inteiro? Eu junto as minhas forças com Daniel, que está semvisão, mas enxerga, e continua disposto a usar a pedra contra o tanque e aseguir nessa jornada, para lutar nossa própria batalha e alterar essa terra.

*Professor e vice-coordenador do departamento de História da UFF.

Um comentário:

Unknown disse...

Parabéns Badaró por mais uma intervensão de extrema qualidade....os movimentos agora mais do que nunca tomam força e a "guerra" está declarada....somos nós, trabalhadores contra a escória que nos dirige....agora mais do que nunca unidos por nossa causa....liberdade para todos e no mínino democracia.